sexta-feira, 23 de março de 2012

Um espaço para a beleza


Daniela Schmitz Wortmeyer

Eu ainda estava meio sonolenta, esperando o transporte para ir ao trabalho, com o coração introspectivo. Acabei me sentando em um lugar onde nenhuma voz me alcançava. Dentro de mim, era como se a manhã tivesse feito uma longa pausa antes de começar a tocar a próxima música.  Então abri o livro, na crônica Restos do Carnaval, de Clarice Lispector. Caminhava docilmente pelo texto, e eis que me detive estarrecida diante da frase: “Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.” Pausa. Respirei fundo, deixando-me enlevar pela beleza das palavras. Foi como se a rosa escarlate se abrisse em meu peito. Fiquei ali sozinha com a frase, o tempo parado, meus pés querendo sair do chão. E de repente meu mundo também desabrochou: comecei a olhar o trajeto até o trabalho com olhos de poeta, admirando a beleza escondida no cotidiano, filosofando sobre as histórias das centenas de pessoas que se deslocavam ao trabalho como eu.
Dentre os tantos versos sensíveis de Mario Quintana, lembrei-me deste: “Quem faz um poema salva um afogado.” Parece que vivemos nos afogando diariamente em um mar de obrigações, debatendo-nos mecanicamente, com pressa de alcançar a próxima tarefa a ser feita. É comum sequer percebermos que o ar vital está acabando: temos infinitas coisas mais importantes a fazer, do que respirar.
Mas se frequentemente esquecemos a respiração em si, junto com os demais aspectos ligados à saúde do corpo, mais seriamente ainda negligenciamos o “ar” que vivifica a alma. É algo dessa natureza que nos oferece um belo poema, como alude Quintana. A comunhão com a autêntica beleza conecta nosso íntimo com valores adormecidos, despertando saudades do paraíso perdido... Creio que semelhante constatação tenha levado o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe a proferir o conselho: “Devemos todos os dias ouvir pelo menos uma pequena canção, ler um bom poema, contemplar uma pintura de qualidade e, se for possível, dizer algumas palavras sensatas.”
No filme Minhas Tardes com Margueritte, o inculto horticultor Germain vivencia uma verdadeira transformação ao ser introduzido no universo da literatura pela idosa Margueritte. Como ocorre comumente, Germain tinha aprendido a ler na escola, mas tal aprendizado não alcançara seu coração. Ler se tornara uma experiência desprovida de sentido, permeada de traumas e frustrações. Porém, Margueritte falou à sensibilidade de Germain: na leitura dos clássicos, ele foi encontrando eco para suas questões existenciais, suas dores e alegrias, despertando para uma nova forma de ver o mundo. Pois o contato com a arte nos enriquece: leva-nos a aprofundar pensamentos, sentimentos e intuições, ampliando nossa capacidade perceptiva e por vezes conduzindo nosso íntimo a um patamar superior de relação com o mundo – como ocorreu comigo ao ler a crônica de Clarice Lispector.
Para o escritor Abdruschin: “Até agora, da ação viva do espírito, da intuição, só nasceu a arte. (...) Mas o espírito não se manifesta no raciocínio, e sim nas intuições, mostrando-se somente naquilo que de um modo geral se denomina ‘coração’.” Por isso a verdadeira arte tem o dom de ecoar no coração humano: busca sua inspiração em um universo sutil, que só pode ser alcançado pela intuição, jamais pelo pensamento calculista. Chega a ser difícil descrever em palavras o que vivenciamos diante de uma genuína obra de arte: sua mensagem evoca vivências profundas que transcendem os limites do raciocínio, conectando-nos a uma parte essencial de nosso ser.
Diante de toda essa riqueza, será que a comunhão com a beleza não merece um espaço na agenda? Lembrando o conselho de Goethe, resgatar um momento para apreciar uma bela imagem, ouvir uma música inspiradora, ler um texto profundo, entre outras inúmeras possibilidades, pode oferecer um pouco do alimento pelo qual nossa alma atribulada anseia, semeando beleza e harmonia nos caminhos cotidianos.

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mario Quintana




quarta-feira, 14 de março de 2012

Sabá, o País das Mil Fragrâncias





Situado a dois mil metros de altitude, ao sul da Península Arábica, na região do atual Iêmen, Sabá era chamado de "país das mil fragrâncias e país do aroma dourado", pois sua riqueza provinha das resinas de árvores como mirra, bálsamo e incenso - cujo intenso perfume podia ser sentido pelos navegantes que singravam a costa do País.

"Bênçãos e alegria!" era o cumprimento dos sabeus de outrora, que viviam rodeados por beleza, harmonia e prosperidade. Esse povo permaneceu por longo tempo isolado das impurezas e tristezas que atingiam a vida dos seres humanos.

A envolvente narrativa de Roselis von Sass resgata a personalidade de Biltis, poderosa rainha e suprema-sacerdotisa de Sabá, foco de infindáveis pesquisas e lendas, e sua célebre viagem em visita ao rei judeu, Salomão. Os ensinamentos da escola de sabedoria de Mestre Bildad, a ligação dos sabeus com a Natureza e sua abrangente medicina, as cerimônias religiosas e a condução política do País, entre outros aspectos, são explorados no curso de descobertas, conflitos e afetos dos personagens.





Vídeo: Grupo Flama

quinta-feira, 1 de março de 2012

O que aconteceu com a infância?


Daniela Schmitz Wortmeyer

Alguém me disse que a infância não é mais a mesma.
Que hoje em dia, para se comunicar com as crianças, é preciso utilizar meios bem diferentes dos (simples) de antigamente. É preciso usar tecnologia e personagens da mídia, dar-lhes produtos para consumir, coisas assim.
Essa opinião me deixou preocupada, intrigada, incomodada. Pus-me então a observar as “crianças de hoje”.
Na praia, um menino de cerca de um ano de idade corre em direção ao mar. A avó zelosa corre logo atrás, tomando-o pelo braço e conduzindo-o para longe da água, tentando entretê-lo com um assunto qualquer. Tão logo ela se distrai, o pequeno aventureiro volta a sua carreira em direção às ondas. E assim se repete, seguidas vezes, a tentativa do menino de explorar o mar, sem conseguir mais do que molhar os pezinhos.
Ali perto, um menino e uma menina maiores têm o privilégio de brincar com as ondas. Deitados sobre pequenas pranchas, eles sorriem continuamente e deixam-se levar pelas marolas na beira da água, sem se importar com o vento insistente do final da tarde, no qual planam serenas gaivotas.
Vi também o êxtase de um menino sentado em seu império, ao centro de uma fortaleza de areia construída com ajuda do irmão e da mãe. Quando passei pela praia, estavam justamente cavando o fosso ao redor do “castelo”, cujo acabamento com montinhos de areia molhada era feito com esmero pelo pequeno regente.
Meu sobrinho de três anos convidou-me a ir até a floresta. Em um primeiro momento, achei que se tratasse do parque botânico que fica próximo à sua casa. Já era noite e chovia muito, e tentei explicar-lhe que não era possível ir até lá. Como ele insistisse, em um lampejo resolvi perguntar-lhe onde ficava a floresta, e eis que ele apontou para o fundo da garagem. Então eu finalmente me conectei com seu universo infantil, e passamos a desbravar a garagem, caminhando entre árvores enormes, encontrando animais, tomando banho de cachoeira e iluminando o ambiente com nossas lanternas imaginárias.
Transitar com dois cachorros pelo aeroporto também rendeu boas observações. Alguns poucos adultos demonstram maior interesse, mas todas as crianças querem se aproximar dos animais. Mesmo que eles estejam fechados em suas casinhas, as crianças tentam olhar pelas aberturas, adivinhando que ali dentro se esconde um ser que merece ser descoberto. Se eles estiverem do lado de fora, então, elas querem tocá-los, acariciá-los, perguntam seus nomes e uma série de outras coisas.
Eu poderia continuar a lista, relatando sobre as crianças que brincam nos parquinhos dos condomínios ou escolas em meu bairro, ou tantas outras situações que me fizeram lembrar as sábias palavras dos educadores Julia Saló e Santiago Barbuy, escritas no fascinante livro “Terra, Água, Ar, Fogo: para uma oficina-escola inicial”:
“A topologia é a sua geometria, a alquimia, sua ciência, a ficção, sua realidade, os jogos, a ocupação, a magia é o poder, a natureza, o meio, e a alegria é o único capital com o qual compram e pagam ao adulto.”
Embora o livro tenha sido escrito em 1977, parece que estamos falando da mesma infância.
Mas por dever de honestidade devo revelar que fiz também observações bem distintas das anteriores. Vi crianças passando longas horas assistindo a “programas infantis” em canais por assinatura, repetindo termos em Inglês e às vezes imitando algum personagem. Uma menina se empenhava em mostrar-me um jogo eletrônico que achava muito interessante, em que escolhia desenhos para serem “pintados” com auxílio de um lápis virtual. Um menino mais velho jogava durante horas um RPG virtual, representando um cavaleiro que subia torres, ultrapassava obstáculos e lutava com inimigos para conquistar um objetivo. Observei também diversas crianças entre adultos, tentando compreender precocemente brincadeiras capciosas ou ironias, assim como tantos assuntos completamente alheios ao seu mundo infantil, por vezes buscando expressar algum “comentário inteligente” que pudesse ser valorizado pelos presentes.
Lembro-me da narrativa de uma amiga sobre um episódio no colégio de sua filha.  O pai de uma menina de seis anos cobrava explicações da professora, alegando que a filha não estava “aprendendo nada” nas aulas de Inglês, pois ao chegar em casa não conseguia lhe fazer relatos a respeito. Minha amiga acrescentou que grande parte dos pais, ao escolher a escola que seus filhos frequentarão na primeira infância, priorizam estabelecimentos que se destaquem pela aprovação dos alunos no vestibular.
Tenho a impressão de que a essência da infância continua a mesma. Porém, reproduzimos uma sociedade que tem pressa em eliminar a infância dos seres humanos, em torná-los adultos precoces, prontos a cumprir seu papel na roda do consumo. Na dissertação “A criança”, o escritor Abdruschin faz um alerta a respeito: “uma criança precoce é uma fruta onde o caroço ainda não chegou ao amadurecimento, enquanto o invólucro já se encontra frente ao envelhecimento!”
Em verdade, a autêntica infância não interessa ao mercado porque não dá lucro a ninguém. Por isso há tanto investimento em manipular os anseios e necessidades das crianças para associá-los a objetos de consumo.
Para Julia Saló e Santiago Barbuy: “Não há material didático mais simples que a matéria mesma. Não há fábrica mais perfeita que a própria natureza. Não há escola mais completa que a própria vida.” Um ambiente rico e variado, que permita à criança explorar livremente as inúmeras possibilidades da matéria, é tudo o que se necessita para o desenvolvimento sadio na primeira infância.
Abdruschin destaca a importância da interação da criança com a Natureza: “As águas, montanhas, florestas, campinas, flores, bem como os animais, tornam-se então familiares a cada criança, e ela ficará solidamente ancorada no mundo, o qual deve oferecer-lhe, para sua existência terrena, o campo de atuação.”
A introdução prematura de meios eletrônicos no ambiente infantil, especialmente como intermediários de brincadeiras, produz obstáculos à experimentação concreta na matéria, fundamental para o desenvolvimento físico, mental e espiritual da criança. “Se essas bases forem deficientes, tiverem grandes vazios, ou se houverem criado zonas proibidas, a mente terá depois uma enorme tarefa para estender pontes entre as ilhas da experiência material básica dos primeiros anos.” (Saló e Barbuy)
Deixar a criança ser criança. Uma antiga e simples fórmula que encerra as melhores bases para a educação infantil. As crianças são naturalmente atraídas para a exploração do meio natural, para a criação de jogos espontâneos com regras adequadas ao universo próprio de sua idade, para o exercício da imaginação e a elaboração de estórias que atendam às suas necessidades de conhecimento e desenvolvimento a cada fase – tudo isso sem a necessidade de interferência da lógica adulta.
O adulto é protetor e orientador, mas jamais deve se apressar em colocar suas próprias conclusões à criança. Cada um precisa fazer suas descobertas pessoalmente. A interação espontânea da criança com seu ambiente deixa ensinamentos que não podem ser expressos em palavras, e que só mais adiante, em estágios posteriores do desenvolvimento, poderão servir de âncora para a elaboração de conceitos.
No afã de preparar as crianças para o “mercado de trabalho”, os adultos acabam impedindo que se estruturem as bases para a formação de seres realmente inteligentes e criativos, que não apenas reproduzam fórmulas prontas e ideias alheias, mas possam elaborar soluções originais para os problemas do cotidiano. Além disso, esquecemos frequentemente que a autêntica realização humana requer muito mais do que estabilidade financeira, poder ou status social. É comum se observar crianças (e adultos) que sofrem de depressão e outros males - muitas vezes com uma agenda lotada, mas com um imenso vazio em seu íntimo...
Abdruschin é categórico: “Vós lhes roubais a verdadeira condição de criança, para a qual, segundo as leis da Criação, têm pleno direito, necessitando até permanentemente dela, porque o vivenciar da infância pertence, incondicionalmente, ao progresso posterior do espírito.” E acrescenta: “O ser humano que foi realmente criança mostrar-se-á também mais tarde de pleno valor como adulto.”

A infância deve ser momento de armazenar um estoque de alegria, disponível para ser acessado durante toda a existência. A alegria infantil brota do simples prazer de viver, sentindo o fluxo vital pulsando em suas veias e o irresistível impulso para o movimento, para o permanente descobrimento e encantamento com o mundo. O olhar de uma criança sobre as coisas é pura poesia. Mas onde está o adulto que ainda sabe andar pelas trilhas da beleza?
Talvez toda essa urgência social em “civilizar” e “adultizar” as crianças seja o mais evidente sinal de que nós, adultos, de alguma forma perdemos a conexão com dimensões humanas que se apresentam em todo o frescor do despertar nessa fase. Por isso às vezes sequer conseguimos perceber a profundidade das vivências de uma criança, tratando-as de modo superficial, uma vez que estão fora do rol dos “assuntos úteis” que mereçam ser incluídos na agenda. Para Julia e Santiago:
“A Natureza, a técnica e todas as experiências de relação humana estão impregnadas de um caudal inesgotável de ensinanças; caudal que poucas vezes é percebido e avaliado pelo ser humano, que antes de haver desenvolvido sua capacidade de percepção sensitiva e intuitiva, entrou bruscamente no mundo da informação e do razoamento.”
Quando perdemos a chave do tesouro da infância... O que acontece? Olhe para as pessoas ao seu redor. Onde está a leveza, a alegria gratuita? Onde está o riso fácil e solto, a natural afabilidade? Onde se encontra a curiosidade espontânea e o encantamento com as pequenas descobertas do dia a dia? Onde está o questionar, a procura dos porquês da existência? Onde ficou a busca de conexão com a Natureza e seus inumeráveis seres? As perguntas podem continuar, mas prefiro fazer apenas mais uma: você ainda sabe brincar?
Uma existência cuja tônica é dada por preocupações racionais e utilitaristas não preenche os anseios mais profundos do ser humano. Torna-se facilmente uma rotina repleta de obrigações, mas vazia de amor e alegria. A verdadeira riqueza humana não pode ser medida em cifras e títulos: ela repousa em valores delicados, alojados em cada coração. Quem não pode perceber a ausência de perfume em uma flor artificial, não poderá compreender o que perdemos ao abandonar a essência da infância.
Porém, para quem anseia por perseguir o rastro do perfume, sugiro que faça as pazes com a criança que guarda em seu interior. Procure ser mais paciente e compreensivo com ela, deixe-a sair de casa para brincar de vez em quando... Afinal, ela é apenas uma criança, que precisa viver sua infância! Ao recuperar a essência da infância em nossa vida diária, caminhamos para o resgate de nossa integridade humana.
“O chamado mundo infantil não é próprio dessa idade unicamente. É um modo de ver o mundo e a vida que a lógica trata de eliminar do ser humano; mas não pode consegui-lo – por ora – na criança. Último refúgio e única reserva para o futuro.” 
(Julia Saló e Santiago Barbuy)