sábado, 25 de janeiro de 2014

Flertar com a beleza


Sibélia Zanon
Na hora do almoço o pantaneiro dorme.
Eu ando de bicicleta.
 A magrela vai quietinha. Um cervo para no meio da estrada de terra e me olha. Olho para ele também. Quero brecar, mas a magrela é enferrujada e resmunguenta. Continuo na banguela, devagarinho. Flertando! Esticando os segundos. Acariciando a beleza. Que seja eterno enquanto dure.



As grandes cidades colaboram para tornar seus moradores prevenidos. Prevenidos contra o mal.
Uma vez, dirigindo à noite, parei no semáforo vermelho. No carro ao lado, um homem baixou o vidro e fez sinal, como quem quer pedir uma informação. Em vez de atender sua solicitação, aguardei ansiosa o semáforo abrir e acelerei o carro. Ainda pude vê-lo me xingar pelo retrovisor.

A cena permaneceu marcante, mesmo depois de anos, porque me fez pensar no quanto as medidas de segurança preventivas, somadas às ameaças que sofremos na vida cotidiana, incentivam o anonimato das cidades, nos tornando frios e, por vezes, rudes.

Numa outra ocasião, também à noite, já distante da cidade grande e quase chegando em casa, passei a acelerar na estradinha de terra, ao notar um carro suspeito atrás de mim. Depois de perdê-lo de vista, voltei a diminuir a velocidade e ao olhar em frente, vi um quati atravessando a rua em diagonal, em disparada, fugindo de mim.
Será que estou repassando a pressão que sinto por onde transito e até a vida silvestre está ficando de orelhas em pé?
Essas e tantas outras cenas levam a pensar: como harmonizar a vigilância necessária com o espaço para o acolhimento?
Num dia um pouco difícil fui tomar café da manhã em uma padaria. Na saída, a moça do caixa me olhou e me desejou um bom dia. Ela abriu uma fresta na impessoalidade e me lançou um sorriso que desintegrou minha aspereza.
Penso que as padarias ajudam a diminuir o anonimato das cidades. Elas ainda guardam uma informalidade que permite olhar para o vizinho de balcão e comentar sobre o pão na chapa ou dizer uma boa palavra para quem serve o café. Já experimentei em padarias, durante momentos de aparente desimportância, grandes felicidades.



Isso mostra que é possível aprender a esticar os segundos bons e flertar com a beleza do momento. Flertar com o aroma do pão quentinho saindo do forno e agarrar o instante, como se cada manhã fosse um recomeço, em que é possível construir uma nova realidade. Tirar o pé do acelerador da vigilância e, vez ou outra, colocá-lo no acelerador do acolhimento. Nem tudo agride, nem tudo machuca, nem tudo apressa. Vai um cafezinho aí?

“Havia tanta coisa para ver, que não sei por onde começar. Ao lado da mesa, onde eu estava, vi exclusivamente pães, das mais variadas formas e tamanhos. Sobre duas mesinhas laterais encontravam-se também somente pães. Todos estavam por demais apetitosos, exalando um aroma muito bom. As prateleiras estavam igualmente cheias dos mais variados produtos de panificação, inclusive de bolos de frutas de todos os tipos.
Numa mesa redonda menor havia apenas um grande pão no centro. Em volta dele encontravam-se inúmeras gamelinhas com diversos tipos de cereais, para mim desconhecidos, todos moídos grosseiramente. Entre eles não havia trigo. Mas eu já sabia, por intermédio de Licos, que os mestres-padeiros não estavam usando farinha branca. E o trigo nem era plantado. Eu teria necessitado de um dia inteiro para contemplar todos os produtos de panificação ali expostos.Roselis von Sass, O Nascimento da Terra, Capítulo: Imagens das Oficinas de Modelos dos Pequenos Enteais

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