sábado, 31 de maio de 2014

Oficina do Destino


Daniela Schmitz Wortmeyer 

Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
Mario Quintana


Certa vez um amigo me contou uma história, que trazia uma imagem mais ou menos assim: uma mulher fazendo um bordado sobre uma mesa alta, com os fios pendurados para baixo. No chão havia crianças pequenas sentadas, que olhavam para cima e viam aquela mistura de fios entrelaçados. Sem conseguir enxergar a figura que se formava sobre a mesa, as crianças não vislumbravam qualquer sentido naqueles fios, considerando tudo uma grande confusão.
Meu amigo me disse que é desse modo que os seres humanos enxergam os fatos de sua vida, o seu destino: como uma confusão sem sentido, porque não podem perceber o que está sendo formado em um plano superior.
Fiquei pensando como os fios de nosso destino formam quadros tantas vezes difíceis de decifrar. É comum arquitetarmos projetos em nossas mentes, de coisas que gostaríamos de realizar e conquistar, acreditando que dessa maneira alcançaremos a idealizada felicidade. Formamos um quadro com nosso raciocínio, um modelo de realização - que é influenciado não apenas pelos nossos desejos pessoais, mas também pela cultura em que vivemos, pelos valores familiares, sociais, midiáticos... E geralmente não considera o movimento da tessitura do destino.
Chega a ser curioso como, em certos momentos, parecemos estar no comando do veículo que conduz nossa vida; porém, em outros, é como se a direção nos fosse tomada, e ficássemos completamente impedidos de desviar o rumo dos acontecimentos. Relutamos, esperneamos, tentamos influenciar a configuração do quadro de muitas formas, com mínimo sucesso. Leva tempo para aprender que, em vez de desperdiçar energia nessa batalha inglória, mais sábio é aceitar a situação e procurar responder da melhor maneira possível ao chamado da vida. Afinal, somos pequenos demais para enxergar o quadro que está sendo formado no ateliê do destino...
Velhas histórias, assim como enredos contemporâneos, narram trajetórias de desenvolvimento de heróis e heroínas, sempre marcadas por diversos tipos de obstáculos e ameaças ao alcance da meta pretendida. No decorrer do percurso, os protagonistas são testados em suas capacidades e descobrem talentos insuspeitados, lapidando virtudes e colhendo aprendizados. Ao final da saga, houve um desabrochar da personagem, que brilha em força e sabedoria.
De fato, toda essa jornada ficaria empobrecida diante de um percurso sempre previsível e cômodo, em que todos os desejos iniciais fossem prontamente atendidos. É nas lutas cotidianas que se forjam heróis e heroínas, atravessando precipícios, desvendando enigmas e enfrentando os monstros do dia a dia - muito embora esse processo possa exigir um amadurecimento interior bastante custoso e desafiador. Após uma etapa de aventuras, o principal tesouro conquistado talvez seja percebido no olhar de quem ampliou sua bagagem de experiências, percorrendo lugares nunca antes sonhados e desenvolvendo-se como ser humano.


Frente a dificuldades e obstáculos, apesar dos golpes e noites mal dormidas, entremeamos cores no quadro de nossa existência. Cada etapa de nossa saga foi tecida por alguma razão, ainda que não consigamos vislumbrar um sentido imediato. E, mesmo que aparentemente tenhamos perdido o controle de nosso destino, a forma como nos posicionaremos diante das situações será de nossa escolha. Uma escolha que conformará a matéria-prima de novos fios, com os quais serão tecidos mais e mais quadros, produzindo histórias que podem ser dignas de se contar.

domingo, 25 de maio de 2014

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Tempero acertado


Sibélia Zanon

A médica perdeu o avião porque uma greve aeroviária impediu que seu voo de conexão chegasse a tempo. Aguardando na comprida fila da companhia aérea, ela xingava tudo e todos em alto tom. Xingava a companhia aérea e seus tripulantes, xingava os atendentes do balcão, xingava os habitantes do país em que estava. O namorado dela, rindo das adversidades, dizia que não era bem assim, que ela não deveria generalizar. A espera na fila levaria mais de duas horas.

Li numa revista a história de uma moça que também perdeu o avião. No balcão da companhia aérea só havia uma atendente. A moça conversou com a atendente e começou a ajudá-la a distribuir os vouchers e a dar informações para os outros passageiros. Alguns perguntavam porque ela fazia aquilo e ela dizia que teria que esperar mesmo e que poderia, então, ajudar. Perto do momento do novo embarque, após ajudar com a fila de passageiros e amargar uma longa espera até o próximo voo, a moça recebeu de uma comissária um novo cartão de embarque. Ela achou que havia perdido o seu cartão e agradeceu. Quando olhou com mais atenção, notou que em seu novo cartão de embarque o assento era de classe executiva.
Como cada um lida com situações extremas ou com um acontecimento que não estava na agenda? Alguns buscam com bom humor uma forma de abrir as portas para uma comunicação que leve à solução do problema. Outros, nem tanto. Há, contudo, formas diversas de reclamar e fazer com que direitos sejam cumpridos.
Dizem que a forma de cada um se expressar está ligada ao seu temperamento, que sua forma de agir “está no sangue”. Cada um tem o seu temperamento, ligado a variantes como a idade ou mesmo o local em que vive. Também os povos trazem determinadas características comuns de temperamento.
Há temperamentos coléricos. Alguns dominados, outros exacerbados. Mas será que tem jeito de temperar o temperamento?

Abdruschin, Na Luz da Verdade

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Uma rotina para chamar de sua


Sibélia Zanon


Deitei na varanda da pousada e olhei o céu. As nuvens da noite anterior haviam ido embora, revelando as tantas estrelas que habitavam aquele espaço misterioso. Percebi que sentia falta de olhar para o céu nas noites estreladas. Mas... por que eu não podia fazer aquilo com mais frequência?
Se a rotina tivesse uma cara, ela se pareceria com a do bicho-papão. “Não dá tempo de parar para pensar, a rotina não deixa!”, “Não tenho tempo, a rotina me engole!” são pensamentos que fazem parte do senso comum. Mas quem constrói essa rotina soberana? Existe um senhor das rotinas, com o qual não conseguimos contato ou negociação?
Acontece que a mal afamada rotina tem, sim, um lado bom. Ela está relacionada à sequência, ao ritmo e aos ciclos da natureza, como o dia e a noite ou as estações do ano. A rotina ajuda a organizar o caos, gera segurança e representa nossas escolhas por determinados padrões, como uma boa alimentação, por exemplo, tempo dividido entre trabalho e descanso e... frestas para olhar o céu.
O perigo está em sistematizar a rotina a ponto de entrarmos no piloto automático. Quando entramos nesse modo de operar, passamos a enfrentar nossos problemas e achar soluções, apaticamente; vivemos grandes histórias sem nos sentir protagonistas delas. Podemos cruzar com um elefante ou com um ipê florido sem notar, porque marchamos anestesiados, embriagados de mesmice, ausentes do momento presente. Vivemos, mas não vivenciamos.


E se pudéssemos reviver cada dia? Será que não poderíamos reviver com um novo olhar, prestando atenção a detalhes, com uma postura nova sobre os mesmos acontecimentos? A ideia, explorada em filmes como Corra, Lola, Corra (Lola Rennt), ou no mais recente Questão de Tempo (About Time), leva a refletir sobre como estamos aproveitando o presente. Será que vivemos com a esperança de que o momento presente seja só um rascunho a ser passado a limpo na próxima cena?
Realizar coisas cotidianas não é empecilho para que ocorram descobertas diárias. O que importa na rotina é a atitude de querer observar e aprender coisas novas, a atitude de querer estar presente, de ter olhos abertos para aquilo que vai além do ordinário. Talvez adotar essas posturas constantemente seja um antídoto para o desejo de reviver cada dia. “Se os seres humanos não se deixassem empolgar de maneira tão absorvente pelas necessidades e pelas muitas ninharias cotidianas, mas quisessem prestar também alguma atenção aos pequenos e grandes acontecimentos que se passam à sua volta, deveria em breve chegar-lhes um novo reconhecimento. Surpreender-se-iam consigo mesmos e mal acreditariam que até então pudessem ter passado impensadamente por coisas tão marcantes”, escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade.
Coisas marcantes fazem parte da rotina. Ainda assim, somos perseguidos pelo mito de que o cotidiano precisa ser suportado, enquanto que o bom e o ótimo estão distantes, escondidos em alguma novidade que está por vir. Prorrogamos, assim, a felicidade. “No meu próximo emprego serei reconhecido.”, “Em um novo relacionamento serei mais feliz!” são mantras ilusórios. O mito do novo se alastra como uma doença do mundo moderno, em que tudo precisa ser sempre novo. Assim, continuamos consumindo relacionamentos e produtos, e com isso somos supostamente felizes.


Imaginar que o importante está sempre além do momento presente gera um mal estar, como se o agora fosse um desperdício, algo esvaziado de sentido, repleto da nostalgia de um “vir a ser”. Dessa forma, a expectativa de realização é transferida para um campo nebuloso, pouco palpável, talvez inatingível. Se, porém, conseguíssemos estar inteiros e focados na realização presente, cresceria em nós a sensação de completude, de satisfação e de utilidade enquanto seres humanos. Cresceria o nível de consciência e de presença no agora.
O céu está sobre as nossas cabeças, com as estrelas mais ou menos visíveis, mas ele continua lá. Nem sempre é preciso sair da rotina para viver o extraordinário. Quem sabe possamos entrar na rotina, com corpo e alma, e então reconheceremos nela as pequenas frações do extraordinário.