quarta-feira, 24 de setembro de 2014

De repente, presente

Sibélia Zanon



No meu aniversário de 26 anos ganhei
 um presente. A minha boneca preferida da infância, esquecida no 
fundo de algum baú, foi resgatada em silêncio. Recebeu cuidados no hospital, 
ganhou nova roupa e sobrevida. Voltou 
para casa embalada para presente, feito 
coisa inédita. Quando abri, além da surpresa do reencontro, a boneca ainda fazia o mesmo gesto encantado que já não sabia fazer há tempos: ninar o bebê. O presente foi, sem dúvida, mais surpreendente do que qualquer coisa nova. Talvez por ter sido elaborado com açúcar e com afeto, como canta a música.
Além dos presentes elaborados, há também os que acontecem sem aviso. Hoje, quando estava chegando em casa, distraída e já quase entrando pela porta, o movimento das folhas me fizeram olhar para o coqueiro. Lá em cima, coloridos, estavam os três tucanos em postura silenciosa e altiva. Talvez aquela fosse uma postura de alerta por causa do barulho que fiz ao bater o portão. Quando eles resolveram voar, mais uma surpresa: eram quatro e não os três que estavam mais perto da vista. O dia ganhou inspiração.
Tarde dessas a professora de música contava sobre a conversa que teve com o pai de uma aluna. O pai estava empenhado em incentivar o desejo de suas filhas pela música e pedia dicas sobre brinquedos que poderia comprar para presenteá-­las. A professora indicou uma coisa inesperada: economizar presentes.
Contou para ele que não teria objeto que significasse mais para as crianças do que ele passar alguns momentos ouvindo música em conjunto, cantando com elas ou escutando­as tocar. Com isso, segredou para o pai que ele próprio, inventando alguns momentos musicais em família, seria o presente mais querido das filhas! O pai foi para casa feliz.

Entender os mistérios dos presentes pode ser mesmo uma arte. Povos antigos viam na sinceridade e na confiança os melhores presentes, e estudiosos acreditam que a reciprocidade era um dos valores que cercava o presentear.
A preocupação em retribuir a hospitalidade era muito forte entre povos vizinhos. Eles recebiam visitantes, oferecendo o que tinham de melhor e, mais tarde, fariam também uma visita, sendo recebidos com o mesmo empenho.
Quando a professora falava na economia do presente, talvez ela também estivesse falando nesse equilíbrio e bom senso que os povos antigos bem conheciam.
     De volta ao jardim, esbarrei outro dia a cabeça em um galho. Olhei para cima e: presente! O galho estava cheio de pitangas maduras.

Texto publicado no livro Espiando pela fresta.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Raízes ocultas

Sibélia Zanon


Toda árvore tem raízes
 e cada uma a seu jeito. 
Algumas possuem raízes
 que habitam profundezas subterrâneas; outras, raízes aéreas 
ou aquáticas. Qualquer que seja o tipo da raiz, sua função é sempre relevante. Sustenta a planta com equilíbrio e absorve substâncias fundamentais para a sobrevivência, como água e minerais.
O ser humano também tem raízes. Mesmo que alguns prefiram, por vezes, ignorá­-las, elas são um ponto de equilíbrio, algo conhecido, que nos traz a sensação de pertencimento, nos faz compreender em que solo estamos pisando e quais são as regras, os sabores, as caras, os jeitos e gestos que permeiam aquele espaço. Mas quais seriam mesmo as nossas caras, jeitos e gestos?
Somos mestiços de índio, africano, polonês, português, italiano, espanhol, entre tantos outros povos, e ainda assim temos uma raiz comum. Além do território continental, as nossas diversas origens levam muitos a dizerem que dentro do Brasil há muitos brasis, nações dentro de uma nação.
A respeito de nossas raízes, o fotógrafo Sebastião Salgado afirmou certa vez: “Isso é uma coisa fantástica no Brasil, que os brasileiros não conhecem bem. Um pedaço grande da nossa história e uma grande constituinte da nossa raça são os índios brasileiros. A gente fica procurando a Idade Média dos outros, da Europa e nós temos uma história fabulosa que desconhecemos. É a cultura indígena brasileira”.
A escritora Roselis von Sass relata em Revelações Inéditas daHistória do Brasil: “Os povos antigos do Brasil eram bem desenvolvidos não apenas espiritualmente, como também terrenalmente. Eles assemelhavam-­se em muito aos primeiros sábios da Caldeia, que viveram há sete mil anos. Principalmente no que se referia aos conhecimentos de botânica, geologia, zoologia e astronomia. Em tudo o que se refere à natureza eles superavam amplamente a ‘civilizada’ humanidade hodierna.” Infelizmente muito desse saber dos povos antigos também se perdeu ao longo do tempo, e as culturas dos povos indígenas atuais guardam apenas pálidos traços dessa herança.
No que diz respeito à civilização moderna, realmente a sua maneira de “construir destruindo” preocupa muitos. “Hoje, se a gente quiser sobreviver como espécie, temos que reconstruir uma parte do que destruímos para poder viver em equilíbrio com a natureza, porque nós somos natureza também. Senão, a natureza bota a gente para fora e ela refaz sozinha o que nós destruímos”, disse ainda Salgado. Se não aprendermos a avançar e a evoluir, respeitando os ciclos da vida, corremos o risco de sermos expulsos da nação natureza.
Sendo parte da natureza, nossas raízes se alimentam de muitos aspectos relativos ao local em que nascemos. Sofremos de uma espécie de patriotismo anímico. “O corpo terreno está ligado àquela parte da Terra onde nasceu! Intimamente ligado também com todas as estrelas dessa bem determinada parte e com todas as irradiações que a ela pertencem. De maneira ampla, muito mais do que podeis imaginar! Somente aquela parte desta Terra dá ao corpo exatamente aquilo de que ele precisa, a fim de florescer direito e permanecer vigoroso”, escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade.
Cada povo e cada nação têm raízes que precisam ser fortalecidas, enobrecidas com base em suas características próprias. “Somente o soerguimento da própria cultura constitui verdadeiro progresso para cada povo!”, escreve ainda Abdruschin.



Uma vez, o pai de uma amiga que gosta de mexer com a terra e plantar no seu sítio, fez uma viagem à Suíça. Lá deparou com um terreno bonito de plantio. No meio daquele pequeno terreno havia uma bandeira da Suíça. A imagem ficou gravada em sua memória e levou-­o à reflexão sobre a importância do solo que alimenta, que serve de moradia e de hospedagem. Como hóspedes que somos, diferentemente do olhar exigente dos donos, poderíamos incorporar o olhar agradecido dos convidados. Não só usar, mas também honrar cada coisa que faz parte do nosso chão, desde o idioma até a natureza que nutre nosso corpo e nossa alma.
Além das raízes que nos conectam com um local, com as pessoas que o coabitam e com uma cultura, há outras raízes mais profundas que fazem parte daquilo que somos e estão além do que enxergamos. Trata-­se da nossa essência. E essa essência espiritual precisa também de nutrição. Por isso, muitas vezes, a sensação de estar desenraizado não acontece apenas quando nos mudamos para um país estrangeiro, mas também quando deixamos de nutrir as raízes da nossa essência.
Na medida em que cada um cuida das próprias raízes, passa a nutrir a vontade de outras pessoas, de também cuidar das suas. Enriquecer e honrar o que há de bom é um caminho para se ter orgulho do solo que nos recebe, seja ele qual for.

Raízes

Sibélia Zanon





O que somos, por onde andamos e como nos sentimos são produtos das nossas escolhas, da nossa história, das nossas origens. São produtos de como estamos nutrindo nossas raízes e nossa essência. Por quais objetivos nos movemos enquanto indivíduos? E enquanto nação? Essas e outras perguntas levam a uma reflexão sobre o solo em que crescemos, o solo que nos alimenta e qual a história e relação que construímos com ele. Qual a importância das nossas raízes e origens?


“Nas minhas memórias enterradas
Vão achar muitas conchas ressoando...”

Manoel de Barros